Supremacia Branca, Colonialismo, Bruxaria e Pentáculo de Ferro

SUPREMACIA BRANCA, COLONIALISMO, BRUXARIA E PENTÁCULO DE FERRO.
© Gede Parma. Todos os direitos reservados.
Traduzido por Lilo Assenci

Eu posso dizer agora mesmo que não quero escrever estas palavras, mas sou impelido pelos Poderosos Mortos, sou impelido por meus ancestrais, tenho uma obrigação com meus juramentos, para ajudar e defender meus familiares e semelhantes, em várias tradições… E, para além de ajudar e defender minha família bruxa, meus juramentos que me inspiram a trabalhar minha feitiçaria por justiça e cura.

Na sexta-feira, 15 de março, um massacre contra membros da fé islâmica ocorreu na cidade de Christchurch, na Nova Zelândia. Foi realizado por pessoas que acreditam que o Islã é inerentemente uma fé violenta e bárbara e cujas ideologias são dolorosamente supremacistas brancas* . Nesta mesma semana, membros do partido político de extrema-direita One Nation, na Austrália, foram criticados por sua política de verificação de DNA do povo aborígene. E nessa mesma semana, apesar de não estar perto dessas atrocidades anteriores, eu pessoalmente fui alvejado e ameaçado via facebook e e-mail por um supremacista branco. Há uma semana, neste dia, facilitei uma aula à distância de duas horas através da plataforma Zoom sobre os temas de apropriação cultural, colonialismo e racismo na feitiçaria e paganismo hoje. Então, que porra é essa?

Esses eventos, embora dolorosos e chocantes para muitos, não surpreendem muitos de nós que sabem, intimamente, que não apenas vivemos em culturas que ativamente marginalizam e oprimem mulheres e pessoas nascidas e designadas como do sexo feminino, pessoas queer, pessoas trans, idosos, crianças, pessoas portadoras de deficiência, trabalhadoras do sexo, etc. Mas, através de tudo isso, ligado a tudo isso – porque toda opressão está conectada – estamos vivendo em culturas que são supremacistas brancas e racistas.

Se você negar isso, então você está em negação. É simplesmente isto. Se você ativamente refutar esta afirmação, então nada que eu possa dizer provavelmente mudará sua perspectiva sobre isso.

Eu moro em terras roubadas. Fui trazido para viver em terras roubadas pelos meus pais, e meus pais precisaram e fizeram estas escolhas para si mesmos e seus filhos. Eu não faço nenhum julgamento sobre estas escolhas. Minha mãe nasceu e foi criada em terras roubadas. Eu vivi nas terras dos povos Jagera e Turrbal, da Nação de Wurundjeri, da Nação de Giabal, Kombumerri, Yugambeh e Bindal e da Nação de Wulgurukaba. Todas invadidas pelas forças imperialistas britânicas, todas ocupadas e liquidadas, e tudo isto sem consentimento… Terras roubadas. Atualmente, moro em uma cidade-colona chamada Brisbane, batizada em homenagem a um homem branco, um escocês, governador de Nova Gales do Sul no início do século XIX. Terra roubada, em homenagem a alguém que faz escolhas apoiadas pelo Império. Esta é a supremacia branca em ação. Não é apenas insidioso; também soa claro como um sino.

Eu não posso falar sobre a supremacia branca sem falar de brancura e racismo.

O racismo é uma forma institucionalizada e frequentemente sancionada socialmente de violência, opressão e marginalização e impulsionada socialmente contra pessoas que não são bem-vindas na categoria de brancos. Brancura é uma categoria que historicamente surge como uma ferramenta não-científica de hierarquia racial. Tons de pele mais escuros são considerados menos desejáveis, menos divinos, menos adequados ou morais e menos evoluídos. A branquidade como categoria evoluiu ao longo do tempo a partir de grupos de pessoas que podem se identificar como anglo-saxões, como um identificador racial e imperialista, em vez de um identificador tribal/cultural. Dentro de estados nacionais colonizados e continuamente ocupados ou países como os EUA, Canadá, Austrália, Nova Zelândia, África do Sul, Brasil, a branquidade (e quem é branco) pode mudar. Ser de descendência em grande parte ou inteiramente europeia pode ser traduzido como branquidade na sociedade e, portanto, privilégio branco.

Pode começar a parecer que a branquidade é uma categoria arbitrária, e isso é porque é, mas não é sem gravidade, história e intenção… É profundamente lamentável que, muitas vezes, ela retire o poder e exponha aqueles que são submetidos a ela, e de fato isso sempre foi uma das intenções da branquidade. Se as pessoas estão ligadas às suas raízes culturais, suas linhagens de ancestrais de maneiras vitais e poderosas, suas histórias e tradições, suas línguas indígenas e seus modos sensuais de ser… Bem, isso é perigoso para o Império e poderia instigar resistência. Nas histórias da invasão e ocupação da Austrália, temos esforços conjuntos para “banir a negritude dos aborígenes”, e certamente não para ouvir e aprender com os Primeiros Povos, mas para conquistar, subjugar, assimilar e, finalmente, destruir completamente. Isto não foi um acidente, ou algum erro infeliz, isto foi e é um imperialismo deliberado e é servido e sustentado através de ideologias racistas e por supremacistas brancos.

É aqui que as bruxas entram.

Entre as grandes populações de pessoas que se identificam como bruxas ou “bruxas do chamado oeste tecnoindustrial**” (para pegar emprestado um termo do meu amigo e recentemente pós graduado, Preston Coyote Vargas), há uma mitologia e uma narrativa em torno da Bruxaria (e esse é o termo que é usado) sendo a religião pré-cristã da Grã-Bretanha… Isto é claramente histórico, acadêmico e culturalmente falso. Bruxaria e seus equivalentes têm sido termos usados em toda a região da chamada Europa, e não é um fenômeno humano que cessa quando chegamos à Turquia ou Norte da África… A prática e o poder da feitiçaria não sancionada, transgressiva, extática, oracular, em profundo contato com espíritos, com o que conhecemos como Voo da Bruxa ou Viagens Astrais existe em quase todas as sociedades e culturas humanas. A Bruxaria pode ser um termo complicado, mas é simplesmente uma palavra inglesa, referindo-se a algo muito especificamente rastreável ao longo da história humana. As pessoas lidas como bruxas foram muitas vezes insultadas e mantidas à distância, e isso também acontecia muito antes do cristianismo se envolver com qualquer país imperialista. Algo que estou escrevendo e dizendo muito nos dias de hoje é o seguinte: a Bruxaria pertence a todas as pessoas. As Bruxas pertencem ao mundo.

Mesmo dentro da Bruxaria revivalista surgida nos anos 50 e 60 na Grã-Bretanha, na Europa, nos EUA e na Austrália, temos histórias e ligações com Aradia, uma figura um tanto controversa, fada ou divindade da herança etrusca ou italiana que personifica a resistência mágica, anti-escravidão, libertação, emancipação e poder. Os corpos das bruxas são de todas as cores e, certamente, somos pretos/pretas e pessoas de todos os tipos de pele escura*** . Nos últimos anos tem havido uma revitalização do interesse em Aradia, e conjurações poderosas e contínuas de Sua presença, ajudam e inspiram nossas comunidades e covens. Tem sido algo de grande beleza para mim que muitas pessoas negras e de pele escura estejam abraçando e trabalhando com suas as palavras e seu legado, revelando e centralizando suas próprias tradições e práticas culturais ao fazê-lo.

Mas não é só Aradia, há uma litania de nomes de espíritos poderosos que se aliam às classes camponesas e trabalhadoras ao longo da história, que ajudam pessoas que trabalham com espíritos**** e bruxas não apenas resistindo, mas ativamente minando, desmantelando e destruindo culturas de dominação, coerção e controle. É irônico que muitos sejam ensinados que as bruxas procuram controlar, quando, na verdade, muitas de nossas práticas e tradições reconhecem que isso não é controle, apenas arte, intenção e responsabilidade.

E assim, cabe a todos e todas que se identificam como Bruxas, todos e todas que são Bruxas, continuar o trabalho cuja linhagem todos nós estamos inseridos e somos herdeiros.

As bruxas são inimigas do Império***** e, portanto, devemos ser antirracistas, antipatriarcalistas, anticapitalistas, anticolonizadores e decolonais. E devemos também reconhecer que somos seres humanos entranhados com formas específicas de pensar deliberada e insidiosamente transmitidas através de famílias presas nas realidades multigeracionais da inculturação****** ; criados/as para sermos racistas, patriarcalistas, capitalistas, colonialistas e continuar a sermos cúmplices deste sistema imperialista.

Hoje de manhã eu me sentei junto com treze bruxas e criadores de magia, conectadas através da distância, através do tempo e dos mares. Juntos, nós invocamos, e traçamos, e corremos o Pentáculo de Ferro, uma ferramenta central para a Tradição Anderson Feri de Bruxaria e Tradição Reclaiming de Bruxaria. Enquanto corríamos e fomos trabalhados pela corrente de Ferro e a tecemos através dos pontos do Sexo, Orgulho, Self, Poder e Paixão… Nós trabalhamos para recuperar essas coisas, tão primordiais e fundamentais para sermos humanos, dos lugares onde elas foram roubadas nós, daqueles momentos em que nos submetemos ou fomos discriminados, naqueles momentos em que nosso sexo, nosso self/Eu, paixão, orgulho, poder foram desonrados, ativamente oprimidos ou tomados sem o nosso consentimento… E esse trabalho contínuo realmente faz isso. Este trabalho do Pentáculo de Ferro é um trabalho de recuperação da alma, é o alinhamento e purificação da alma, está reforçando e fortalecendo o trabalho; isso nos destroça e nos reconstrói mais afinados com o que e quem somos, ao mesmo tempo em que nos tornamos… E aqui está o poder das bruxas. Temos maneiras inteligentes e astutas de tomar de volta o que foi tomado, independentemente de como desistimos do que era nosso ou de como o perdemos…

Somos bruxas, por isso sabemos que somos responsáveis. E se nós não sabemos disso, então eu não sei o que sabemos…

Nós somos bruxas e o que quer que seja o Império nunca se sente completamente seguro, e não está seguro… Porque humanos são animais, nós podemos ser enjaulados, você pode nos vencer, você pode nos matar de fome, você pode nos estuprar e levar nossos filhos e nossas casas… Mas somos animais e nossos corpos são dotados de instinto, força, resiliência e astúcia. Na Tradição Wildwood de Bruxaria há um pedaço de sabedoria que eu amo muito. Está contido no cerne de palavras que devem ser pronunciadas em voz alta no ar, para serem ouvidas:

“Meu corpo é o Livro, e o Livro é a Terra…”

Muito da Bruxaria que conheço está contida nessas palavras e no que vem depois. Um talentoso e inteligente amigo meu recentemente escreveu um artigo no site Patheos, cuja mensagem na essência eu me alinho, e sei que o Império tem tentado obliterar a Bruxaria do mundo e, por milênios, fez de tudo para conseguir isso. Eu não acho que isso possa realmente ser negado, existem todos os tipos de complexidades entrelaçadas com isso, como gênero, guerra, doença, cultura, religião e corpo… Mas no final do dia, a Bruxaria e Feitiçaria são ativamente temidas pelas forças imperialistas.

Chega um momento em que percebemos que devemos escolher. Eu escolho Sexo – Self – Paixão – Orgulho – Poder e invoco Amor – Sabedoria – Conhecimento – Lei – e Liberdade. Eu escolho ser integro com a minha vontade – que minha palavra é minha vontade e meu vínculo – que meus laços possam ser aproveitados para fazer uma grande magia. E assim eu conjuro no caminho daqueles que vieram antes de mim, daqueles que estão comigo, e daqueles que ainda estão por vir,

Pela torre torta e o sino quebrado
Pela rosa espinhosa e a árvore retorcida
Pela lua brilhante e pelo próprio mar ondulado
Por todo o poder de três vezes três em nossas vidas –

O que você escolhe? E como essas escolhas se tornarão sua vontade, seus laços para realizar e aproveitar a grande magia?

Notas:

* N.T.: De acordo com o Google Tradutor, um supremacista branco, ou em inglês, “white supremacist”, é aquele que advoga a favor da supremacia de um grupo específico, especialmente determinado por raça ou sexo/gênero. Dessa forma, podemos entender o termo supremacista branco como aquele que promove a supremacia branca acima de qualquer outra raça, principalmente em relação ao povo negro.
** N.T.: uma referência à bruxaria ocidental e sua relação com a tecnologia do período pós-industrial.
*** N.T.: do inglês “Brown People”, referindo-se a pele escura de pessoas de países asiáticos do Hemisfério Sul, como a Índia, Tailândia etc.
**** N.T.: do inglês “Spirit-Workers”, evitei o uso da palavra “xamã” por seu conteúdo antropológico e ocidentalizado, que pouco honra as tradições dos povos nativos de cada continente. De fato, faz o inverso: generaliza práticas, tradições e legados diversos ao redor do mundo.
***** N.T.: consideremos “Império” como a cultura patriarcal, imperialista, colonizadora e racista.
****** N.T.: segundo o Wikipedia, Inculturação é a influência recíproca entre o cristianismo e as culturas dos países onde a fé cristã é praticada.

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